Nossa sociedade sempre se estruturou a partir da violência. Desde cedo nos ensinaram que a vida se organiza sob uma perspectiva de disputas, lutas, fronteiras e violências, que foram naturalizadas ao longo do tempo. Isso porque a própria história da humanidade, nos foi contada por aqueles que venceram as batalhas e quiseram deixar seu nome registrado nela.
O olhar progressista sobre a existência humana nos levou a pensar que era preciso controlar e dominar a natureza para que pudéssemos viver melhor, o que já é uma forma de violência, pois pressupõe que para vivermos, outras coisas precisam deixar de existir e essa lógica se estende para todos os sistemas sociais.
Embora a mudança do paradigma da violência para uma cultura de paz nos pareça algo muito distante e difícil de ser realizado, a boa notícia é que ela começa dentro de nós mesmos e tem na educação o seu maior vetor de difusão. Em outras palavras, funciona mais ou menos como na célebre frase de Mahatma Gandhi: “Seja a mudança que você quer ver no mundo”.
É por isso que podemos pensar na cultura de paz como uma construção. Exatamente porque ela se faz a partir da conexão entre as pessoas e se inicia com a conexão de si consigo mesmo. Ou seja, se desejamos que o outro mude e comece a agir com respeito em relação a nós, o primeiro passo é mudar a forma como lidamos com ele.
O mundo, a sociedade, a escola, a família, só poderão mudar se cada um mudar primeiro o seu olhar para si mesmo, percebendo que não se está separado do todo e em disputa com os outros seres, mas que é parte deste todo que se manifesta dentro de si. Assim, podemos dizer que a construção de uma cultura de paz começa na compreensão do sentido da própria existência.
Para a Monja Coen, uma das mais reconhecidas representantes do Zen Budismo no Brasil, a cultura de paz deve estar presente na educação e ser construída na transversalidade, desenvolvida em todas as escolas, disciplinas e espaços. Segundo ela, a cultura da violência permeia todas as áreas do conhecimento dando margem para pensarmos que os seres humanos são violentos por natureza, o que não é verdade.
Como exemplo, a Monja menciona um clássico pressuposto da geografia, o de que os países localizados no hemisfério sul (como são posicionados simbolicamente), estariam abaixo dos do hemisfério norte. Para ela, essa simples afirmação revela um aspecto de opressão, uma vez que a terra está em constante movimento de rotação, portanto, a definição de norte e sul, no que diz respeito às posições das nações no globo terrestre, estaria sendo arbitrária.
Além desse olhar mais consciente sobre si e de uma visão de mundo mais inclusiva e cosmológica, há outras práticas que podemos adotar para atuar em direção à construção de uma cultura da paz. Uma delas é a proposta sistematizada pelo psicólogo estadunidense Marshall Rosenberg, chamada de “comunicação não-violenta”.
Trata-se de uma abordagem específica da comunicação que diz respeito tanto ao falar quanto ao ouvir e está baseada em formas de expressar as nossas verdadeiras necessidades e procurar compreender as dos outros.
Os registros da comunicação não-violenta são milenares e de acordo com Marshall Rosemberg, alguns personagens da nossa história como Jesus Cristo e Buda, já a utilizavam há milhares de anos. Mais contemporaneamente, ela foi expressada por Mahatma Gandhi, Martin Luther King e Dalai Lama.
A proposta de Rosemberg, não é que busquemos ser o próximo Cristo ou o próximo Buda na Terra, mas que procuremos fazer diariamente o nosso treino para, pouco a pouco, mudar a forma de nos comunicar com as pessoas, tornando nossa comunicação mais eficiente e as relações humanas mais harmoniosas, seja qual for o ambiente ou a situação.
O fato é que nem sempre identificamos nossas falas como violentas. No entanto, elas são capazes de gerar sentimentos negativos e até sofrimento nas pessoas com as quais nos relacionamos, sejam nossos filhos, colegas de estudo ou trabalho, companheiros e companheiras.
A não-violência significa permitir que venha à tona o que há de positivo em nós, possibilitando que as nossas interações sejam guiadas por sentimentos como amor, compaixão, compreensão, gratidão, respeito e empatia. Evitando que o egocentrismo, a ganância, o ódio, o preconceito, a agressividade e a suspeita, possam dominar nossos pensamentos e nossa forma de agir.
São as habilidades de linguagem e comunicação que norteiam a comunicação não-violenta e fazem com que a nossa humanidade se manifeste no dia-a-dia das relações, mesmo em condições adversas.
Tais habilidades devem ser utilizadas em substituição aos padrões de defesa já arraigados em nossos comportamentos quando nos vemos expostos a situações de crítica ou julgamento, quando normalmente costumamos recuar ou atacar.
A proposta da comunicação não-violenta é ser uma forma de comunicação compassiva, ou seja, passarmos a escutar a nós mesmos de forma mais profunda, além de escutar o outro que nos fala, sempre com respeito, atenção e empatia. É dessa forma que, segundo Rosemberg, vamos soltando os escudos e passando, gradativamente, a mostrar como somos interiormente, fazendo com que as outras pessoas passem a agir da mesma forma.
Assim, as pessoas com as quais dialogamos, ao invés de sentirem que estão sendo atacadas, passam a perceber a nossa interação como algo positivo, a sentir que estão sendo ouvidas e acolhidas de verdade, tendendo a abrirem-se e a nos tratar com respeito.
A comunicação não-violenta pode atuar e gerar benefícios em 3 níveis: o intrapessoal (nossa relação conosco mesmos), o interpessoal (nossa relação com os outros) e o sistêmico (relação com os sistemas que fazem parte das relações humanas e possuem acordos implícitos, como é o caso da escola).
Seja em casa, no trabalho ou no ambiente escolar, o importante é sempre observar a situação, procurando compreender se o que aquela pessoa está dizendo ou fazendo pode acrescentar algo para mim, sem fazer julgamento ou avaliação ou dizer se é certo ou errado.
Depois disso, é preciso observar como nos sentimos ao observar a situação. Perceber se ficamos irritados, assustados, alegres ou tristes. O próximo passo é tentar reconhecer quais de suas necessidades estão ligadas aos sentimentos identificados.
E por fim, fazer um pedido que precisa ser bem específico, enfocando diretamente o que estamos querendo da outra pessoa para que possamos ficar bem. Lembrando que muitas vezes, essa prática não precisa necessariamente ser realizada por meio de palavras, já que a essência da comunicação não-violenta está na própria consciência deste processo.
Para saber mais sobre “cultura da paz” e “comunicação não-violenta”, sugerimos as seguintes leituras:
- O inferno somos nós. Do ódio à cultura da paz. Leandro Karnal e Monja Coen. Editora Papirus 2018.